Antonio Milena | Edson Vara |
Hilda Morana: a psiquiatra fará a identificação de psicopatas nos presídios paulistas. É o início de um trabalho para proteger a sociedade de pessoas como Francisco de Assis Pereira, o maníaco do parque, o mais famoso caso brasileiro |
A fronteira da maldade
A ciência avança na identificação de
psicopatas, o primeiro passo para
entender a extensão desse mal
Psicopatas são o que de mais temível e intrigante os descaminhos da mente humana podem produzir. Eles são eloquentes, charmosos, sedutores e capazes de impressionar e de cativar rapidamente. Parece bom? Somem-se a essas características insensibilidade, frieza, mentiras, uma brutal capacidade de manipulação e nenhum sentimento de culpa ao fazer o mal. É assim que eles são descritos pelos médicos. Portanto, embora assombroso, esse é o perfil mais realista.
No código internacional de doenças, editado pela Organização Mundial de Saúde, a psicopatia se enquadra na classificação de distúrbio de comportamento anti-social – uma anomalia cuja incidência no mundo é de 5%. Os psicopatas são o extremo mais grave desse grupo. Correspondem a 1% da população mundial. É grande a possibilidade de já se ter topado com um deles sem saber. Examine-se novamente a estatística. De cada 100 pessoas, uma é psicopata, de acordo com a probabilidade aritmética. Para quem gostaria de criar uma defesa totalmente segura contra eles, pode-se adiantar que é difícil.
Há entre muitos psiquiatras a desconfiança declarada de que vários dos atos bárbaros vistos hoje podem ter origem nesse mal. O atentado praticado por Osama bin Laden contra as torres gémeas de Nova York e o assassinato dos seis turistas portugueses em Fortaleza são característicos. Os sinais da presença deles na sociedade são inúmeros. O desafio é reconhecê-los. Sabem enganar e dizer exactamente o que se quer ouvir. "O leigo normalmente só descobre depois que foi prejudicado", afirma a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa, especialista em medicina do comportamento pela Universidade de Chicago. A psicopatia não é exactamente um problema mental. É uma zona fronteiriça entre a sanidade e a loucura. Na prática, os pacientes não têm delírios, alucinações. Tampouco perdem o senso da realidade.
São pessoas inteligentes, mas incapazes de ter sentimentos altruístas, de sentir pena ou piedade e de se enquadrar nos padrões éticos e morais das sociedades em que vivem. Sua motivação é a satisfação plena de seus desejos, mesmo que isso envolva um golpe financeiro, a falência do concorrente ou, nos casos mais radicais, um estupro ou um assassinato. Tanto faz. O caso brasileiro mais conhecido é o do motoboy Francisco de Assis Pereira, o maníaco do parque, preso no Complexo Penitenciário do Carandiru, em São Paulo. Ele é acusado do assassinato de doze mulheres. Nove desses crimes ele confessou. Muito se especulou sobre que loucura teria levado a acções tão bárbaras. Chegou-se a dizer que havia uma influência do além. Seu laudo psiquiátrico – obtido com exclusividade por VEJA – é categórico no diagnóstico. Trata-se de um psicopata.
Embora seja essa a visão mais usual, o psicopata que mata e tortura suas vítimas não corresponde ao perfil mais frequência. O mais comum é o tipo parasita. É assim que se define aquele que se dedica a atormentar e dar golpes em suas vítimas sem nunca atentar fisicamente contra elas. O maior especialista mundial em psicopatia é o psicólogo canadense Robert Hare, da Universidade de British Columbia. Hare, por meio da observação clínica de seus pacientes, produziu um dos mais eficientes métodos de análise do comportamento e identificação dos psicopatas. Em seu livro mais famoso, Without Conscience, ele descreve inclusive os psicopatas de colarinho branco, pessoas que dedicam a vida a trapacear nos negócios.
Conhecer a fronteira entre a loucura e a mente sã é ainda um desafio para médicos e cientistas. O método desenvolvido por Hare já está em uso em países como Alemanha, Dinamarca, Holanda, Canadá, Inglaterra e em alguns Estados americanos. Uma de suas principais vantagens é a aplicação no sistema carcerário. Estudos realizados nos Estados Unidos e no Canadá estimam que a incidência de psicopatas entre a população carcerária chegue a 20%. Sua presença na prisão não passa despercebida. Eles têm o perfil adequado para se tornar os chefões da cadeia e os líderes de rebeliões. Podem transformar os outros 80% dos presos em massa de manobra. "Além de recriarem o inferno na cadeia, atrapalham a ressocialização dos detentos que podem ser recuperáveis", afirma a psiquiatra forense Hilda Morana. "É esse um dos principais motivos de o Brasil ter uma taxa de reincidência de crimes tão alta, na casa dos 70%."
Hilda encarrega-se, neste momento, de traduzir e validar o método de Hare no Brasil. Esse é o objetivo do doutorado que faz no Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo. Na etapa final, seu trabalho inclui a aplicação do teste de Hare em dez unidades penitenciárias de São Paulo, de acordo com o compromisso assumido com o secretário de Administração Penitenciária do Estado, Nagashi Furukawa. O resultado dessa avaliação, segundo a psiquiatra, possibilitará cuidar melhor dos 80% de detentos que ficam expostos à perversidade dos psicopatas. Hilda pretende ainda acompanhar, por quatro ou cinco anos, a vida desses indivíduos depois que saírem da prisão. Sua hipótese é que voltarão a cometer crimes muito antes e com mais facilidade que bandidos comuns. "Normalmente, eles têm as penas atenuadas por bom comportamento", afirma Ana Beatriz Barbosa. "Eles são tão dissimulados que se comportam como cordeiros na prisão. Virou moda forjarem uma conversão ao protestantismo."
A história registra casos de psicopatas que se tornaram celebridades. Um dos mais famosos é o do pintor italiano Michelangelo Merisi, o Caravaggio (1571-1610). Ele morreu, aos 39 anos, após uma atribulada vida de desajustes e crimes – além, claro, de uma das mais importantes obras legadas à história da arte. No livro Loucos Egrégios, o médico Juan Antonio Vallejo-Nágera apontou vários indícios de que a obra de Caravaggio teria sido influenciada por seu comportamento anti-social. Ele chamou a atenção para alguns detalhes macabros da obra de Caravaggio. No quadro O Sacrifício de Isaac, observa a expressão fria do ancião enquanto este se prepara para sacrificar o próprio filho.
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