Link original aqui
Sara R. Oliveira| 2008-04-01
Educare.pt
A ex-presidente da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco garante que hoje há mais e melhores instrumentos para punir crimes contra menores, mas que ainda há um caminho a percorrer para alcançar a desejável tolerância zero.
A comunidade educativa tem um papel fundamental na denúncia de casos de maus-tratos. Dulce Rocha, que assumiu a presidência da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco entre 2003 e 2005, actual presidente executiva do Instituto de Apoio à Criança (IAC), revela que têm sido dados passos importantes nas matérias que envolvem menores, mas admite que há questões que merecem um olhar mais atento.
A responsável lamenta que a impunidade continue a prevalecer. Mesmo assim, Dulce Rocha sublinha que a sociedade está mais desperta. "Quer-me parecer que há já consciência de que a pobreza é um factor de risco", exemplifica. Na sua opinião, a formação nesta área, sobretudo dos magistrados, é imprescindível para que os diagnósticos sejam mais correctos e as decisões ajustadas.
Dulce Rocha é magistrada do Ministério Público desde 1981. Em 1991, inicia funções como curadora de menores no Tribunal de Menores de Lisboa. Entre 1996 e 1999, coordena a Comissão Nacional dos Direitos da Criança, que elaborou o relatório sobre a aplicação da convenção em Portugal. Em Outubro de 2001, integra a delegação portuguesa enviada ao Comité dos Direitos da Criança em Genebra e, em Junho de 2003, é nomeada pelo Procurador-Geral da República para integrar um grupo de trabalho que, a nível europeu, investigou os abusos sexuais de crianças. Em Maio de 2003, é nomeada para membro do Conselho Técnico e Científico da Casa Pia.
EDUCARE.PT: Defendeu o alargamento do conceito de perigo na lei de protecção de crianças e jovens. Um conceito que possa funcionar preventivamente. Está tudo igual ou têm sido dados passos nesse sentido?
Dulce Rocha: Ainda não foi possível esse alargamento, mas tenho muita esperança de que o Parlamento aceite uma proposta do Instituto de Apoio à Criança (IAC) que, justamente, defende um conceito mais alargado de conteúdo preventivo, na medida em que conseguirá evitar que crianças em situações de perigo sejam efectivamente vitimadas.
Refiro-me àqueles casos em que, não tendo havido exercício da função parental, outrem se substituiu aos pais nas suas responsabilidades quotidianas de cuidado, e em que se desenvolveram relações psicológicas profundas entre a criança e essas pessoas que são as suas figuras de vinculação e de referência.
O IAC preconiza a inclusão dessas situações na Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, por forma a prevenir gravíssimos danos psicológicos na criança, caso seja decidida a ruptura desses laços afectivos no âmbito de uma acção de regulação do exercício do poder paternal, por considerar não ser esta a acção própria em casos de não exercício prolongado das responsabilidades parentais. A acção de promoção e protecção mostra-se mais adequada, sendo urgente a consagração legal expressa do direito da criança à preservação das suas ligações psicológicas profundas.
E: Há impunidade em casos de maus-tratos e abusos sexuais de crianças? O que pode ser feito para alterar a situação? Os crimes contra menores só prescreverem quando as vítimas tiveram 18 anos poderá ser uma das soluções?
DR: Lamentavelmente, é minha convicção que a impunidade continua a ser a regra, embora seja notória uma maior consciencialização da comunidade, que cada vez denuncia mais casos. Houve porém uma evolução muito positiva, visto que, ao contrário do que sucedia há bem pouco tempo, a maioria dos crimes contra crianças tem agora natureza pública, com um prazo de prescrição bastante mais longo, o que significa que o nosso legislador passou decididamente a considerar de interesse público o bem-estar das crianças. A natureza semipública destes crimes indiciava uma inadmissível indiferença perante o sofrimento das crianças, que ficavam inteiramente sozinhas quando o agressor fosse o pai ou a mãe.
Por outro lado, a exigibilidade da queixa, quando a vítima fosse uma criança, conduzia a uma situação extraordinária, que era a de permitir a extinção do direito de queixa aos dezasseis anos e meio em casos gravíssimos de abusos sexuais prolongados. Creio que hoje temos mais e melhores instrumentos para punir estes crimes, embora ainda estejamos longe da tolerância zero que desejamos.
E: O que tem faltado para que os direitos das crianças tenham o lugar que merecem na Constituição portuguesa, uma vez que não entram no artigo que define as obrigações fundamentais do Estado?
DR: O reconhecimento da criança como sujeito de direito e de direitos é muito recente, pelo que, na prática, e designadamente a nível das decisões administrativas e judiciárias, constatamos que os direitos dos adultos continuam a ter um valor superior. Por vezes, sem se darem conta, os nossos decisores e também os nossos deputados desconsideram a criança, não valorizando, da mesma forma, a sua vontade, os seus sentimentos, as suas emoções, do que é exemplo a exclusão da sua voz.
Tem havido, por isso, não só em Portugal mas no mundo inteiro, um movimento no sentido de ouvir a criança, particularmente desde a aprovação da Convenção sobre os Direitos da Criança, e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem proferido decisões históricas sobre essa matéria, o que é bem significativo do que ainda há a fazer.
Quanto ao artigo 9.º da Constituição da República, na próxima revisão constitucional, estou convencida de que integrará essa alínea tão necessária que diga caber ao Estado, como tarefa fundamental, a protecção da criança.
E: A especialização dos magistrados na área dos direitos da criança continua a ser uma miragem?
DR: Ainda não temos especialização de magistrados. Nem temos ainda sequer a cadeira de Direitos da Criança nos curricula da formação inicial das faculdades de Direito, mas temos de reconhecer que estamos bem melhor do que há uns anos. Tem havido um esforço por parte de alguns docentes universitários, no sentido de organizarem cursos de pós-graduação sobre Direitos da Criança, que têm sido muito interessantes e com elevada frequência. Também aqui será a progressiva consciencialização da importância dos conhecimentos científicos que conduzirá à assunção das aquisições cognitivas como uma necessidade e uma exigência do século XXI.
E: Os portugueses têm, de facto, noção das situações que são consideradas de risco para os menores? Por exemplo, que viver em habitações degradadas ou faltar consecutivamente à escola são também factores que entram nesse conceito?
DR: Creio que sim. Quer-me parecer que há já consciência de que a pobreza é um factor de risco, que será tanto mais relevante quanto for associado a outros factores, de cuja conjugação pode resultar o perigo concreto para uma criança.
E: O papel e a intervenção das comissões têm sido, em alguns casos, colocados em causa. Como analisa as críticas quando algo corre mal?
DR: Depende muito do caso concreto. Por vezes, podemos assistir a críticas injustas, mas poderá também ser um sinal de que a comunidade está mais exigente para com as suas estruturas de decisão, particularmente quando estamos perante situações dramáticas de crianças que perdem a vida depois de alguém ter denunciado maus-tratos, por exemplo. É por isso que é fundamental a formação. Quanto mais soubermos, mais facilidade haverá em diagnosticar correctamente e tomar decisões ajustadas e atempadas, que evitem o prolongamento do sofrimento das crianças.
E: Falta mais poder para que as comissões possam actuar atempadamente? Em tempos, chamou a atenção para o facto de essas estruturas só poderem actuar caso os pais consintam...
DR: O consentimento dos pais é necessário, por imposição constitucional. Só os tribunais podem agir sem consentimento dos pais. Por isso, entendo que há situações que deveriam manter-se sob reserva dos tribunais e que são as que consubstanciem a violação de direitos fundamentais. Entendo que deve ser a natureza das acções praticadas que deve determinar a entidade competente para decidir e não a questão do consentimento, porque isso é, afinal, colocar frequentemente - sempre que seja o pai ou a mãe - o agressor a decidir sobre qual a entidade que vai apreciar o caso, o que é perverso, sob o meu ponto de vista. Será dar poder a quem utilizou abusivamente o poder paternal, visto que este lhe foi dado no interesse do filho. Ou seja, nos casos mais sérios de violação dos direitos fundamentais (maus-tratos e abuso sexual pelos pais), que se traduzem em enormes conflitos de interesses entre a criança e o adulto, os tribunais, que são os órgãos de soberania que a civilização criou para decidir os conflitos graves, não estão presentes. Creio ser indubitável que esta é uma demonstração de que há efectivamente uma desvalorização da criança, visto que, apesar do movimento actual de desjudicialização, não se admite, por exemplo, que um divórcio litigioso seja apreciado pelo conservador do Registo Civil.
E: Defender a prevalência da relação afectiva sobre a biológica na atribuição das custódias é um critério objectivo ou subjectivo?
DR: Actualmente, já não podemos opor a relação afectiva à biológica, porque a biologia integra também os afectos. Será por isso mais rigoroso falar da oposição entre relação afectiva e genética. É, sem dúvida, um critério objectivo, fundado nos conhecimentos científicos actuais. Aliás, o próprio TEDH tem dito que a relação biológica só releva para efeitos de protecção do direito à família se for acompanhada das responsabilidades financeiras e também das responsabilidades quotidianas de cuidado e afecto com a criança, que são imprescindíveis para o seu desenvolvimento equilibrado e saudável.
E: Que papel deve ter a comunidade educativa nas questões dos riscos, até pela proximidade que mantém com as crianças?
DR: A comunidade educativa desempenha um papel fundamental, visto que está presente diariamente na vida da criança, o que lhe dá uma responsabilidade muito grande no seu desenvolvimento.
E: Faltam estruturas ou apoios nos estabelecimentos de ensino para que os casos sejam sinalizados atempadamente?
DR: O IAC tem entendido que a mediação escolar é essencial para sinalizar não só casos de maus-tratos que devem ser participados às comissões de protecção, mas também para trabalhar casos de absentismo escolar e até de violência entre pares. Para o efeito, o IAC tem incentivado a criação de gabinetes de apoio ao aluno e à família em todo o país.
E: Como analisa a mediatização dos casos mais complexos e que envolvem crianças? Há vantagens ou desvantagens?
DR: Poderá haver desvantagens derivadas do excesso de exibição de determinado caso em concreto e do tratamento desadequado devido à busca de sensacionalismo da notícia. Mas creio que as vantagens da denúncia superam largamente as desvantagens, pois o que de pior pode haver é a indiferença motivada pelo silêncio.
E: Essa mediatização pode contribuir para que haja mais denúncias?
DR: Não tenho dúvidas de que a notícia dos casos facilita as denúncias, quer de terceiros, quer das próprias vítimas.
E: Portugal tem uma rede de instituições de acolhimento de crianças eficaz?
DR: Tem-se feito um esforço grande, nos últimos anos, para melhorar o acolhimento, humanizando-o e tornando-o mais seguro, designadamente através de formação adequada, com vista a retirar-lhe definitivamente algum cariz tipo asilar que ainda subsistia. Creio que poderemos dizer, também aqui, que houve uma evolução muito positiva nesta área, mas claro que podemos sempre aperfeiçoar a qualidade do acolhimento. E as instituições têm sido extraordinárias porque são, muitas vezes, as primeiras a querer prestar cada vez melhores serviços e a mostrarem-se disponíveis para mudar, mostrando saber que a ética do cuidar é sobretudo uma responsabilidade.